30 de set. de 2009

Sobre morros, cartuchos e esportes

Rági tem sete anos e vive num morro carioca, quase sempre descalço. Alterna sua rotina entre a casa da avó, a escolinha e as brincadeiras com os velhos cartuchos que os donos do morro deixam por aí. Algumas de suas vizinhas já começam a pendurar dentro dos barracos alguns enfeites de Natal, pois dezembro está chegando. A maioria dos enfeites são velhos, provenientes das casas das “patroas” onde as mulheres passam o dia fazendo faxina. Segundo sua mãe, Rági tem seu nome inspirado num personagem de novela, mas o escrivão do cartório fez questão de abrasileirar. É o caçula de oito filhos. Sua irmã mais velha, Sasha, já fugiu de casa fazem três anos. Para ele, disseram que foi trabalhar na Zona Sul, mas ele sabe que ela continua no morro, mais precisamente lá no alto.
Rági lembra daquele movimentado mês de agosto. Na escolinha, todos os dias eles tinham trabalhos referentes a esportes, a desenhar atletas. Às quatro da tarde, depois do lanche (a refeição mais completa do dia), sentava em frente à televisão de 14 polegadas da escola (a de 29 havia sido roubada no início do ano) e assistia, junto com seus colegas, ao movimento que acontecia na mesma cidade em que ele vivia, mas numa realidade totalmente alheia à sua. Lembra também daquele dia em que três homens bem altos, usando camisetas com as cores azul e vermelha subiram no morro, acenaram, passaram a mão na cabeça de algumas crianças (Rági não teve esta sorte) e foram embora. Foi o único contato que ele teve com aquela gente estranha que viveu na sua cidade naquele ensolarado agosto.
Lembra também das palavras da sua mãe (nunca conheceu o pai) no início daquele ano: “Filho, tu vai ver como a nossa vida vai mudar esse ano, o pessoal da televisão ta falando isso”.
Mas ele já estava em novembro e um dia foi com os amigos da escolinha numa excursão pelo centro. Passaram em frente àquele estádio novo que haviam construído, mas que depois da festa não havia sediado quase nenhum evento. Ouviu duas professoras comentando que uma delas havia pensado em comprar um apartamento de uma tal de “Vila”, mas desistiu depois de ler no jornal que muitos apartamentos apresentavam rachaduras, resultado da construção apressada para que ficassem prontos a tempo. Visitando os lugares que viu na televisão lá em agosto, ficou sabendo que a Prefeitura havia aberto inscrições para escolinhas de basquete e handebol, mas sua mãe disse que não tinha dinheiro para pagar a inscrição e nem o uniforme.
Voltou para casa um pouco antes do previsto, pois estava chovendo e tinha medo que acontecesse a ele o que aconteceu com dois de seus coleguinhas, que morreram soterrados no morro vizinho no último deslizamento. Ao chegar em casa, sua mãe lhe informou que não haveria aula no dia seguinte, pois ela foi informada em seu celular que um aluno morreu vítima de bala perdida. Além disso, já eram 19 horas e depois desse horário os donos do morro não deixam mais ninguém circular livremente por ali.
E assim sua vida seguia. Amanhã brincará com dois cartuchos novos que encontrou no caminho de casa. Sonha em ser dono do morro quando crescer. Vai dormir com fome porque não houve janta naquela noite, pois sua mãe não tinha dinheiro. Mas dorme feliz, porque aquele estádio era mesmo muito bonito, e aquilo existia na sua cidade.

Rio de Janeiro, novembro de 2016.

3 comentários:

  1. Desculpa a ignorância, mas eu não captei quem seriam os homens de vermelho e azul O.O

    ResponderExcluir
  2. Bela percepção amigo Deluca...
    Infelizmente creio que isso será mesmo uma realidade em 2016...

    ResponderExcluir
  3. Jogadores de basquete americanos, Elisa!

    ResponderExcluir